Deu ruim na humanidade
No sétimo capítulo do diário de bordo na
Antártida, a jornalista observa uma colônia de animais humanos endinheirados em
estado de total negação da realidade
ELIANE BRUM
A Bordo Do
Navio Arctic Sunrise - 26 ENE 2020 - 12:37 BRT
Eu sei que a
humanidade está num momento difícil. Você sabe que a humanidade está num
momento difícil. (...) No sábado, 25 de janeiro, porém, eu tive certeza sobre o
fim do mundo como o conhecemos. Nesta data, não observei pinguins nem baleias
nem focas. A espécie sob minha observação era o homo sapiens em estado de
absoluta negação.
Estávamos prontos para
desembarcar do Arctic Sunrise e embarcar num bote que nos deixaria em
Hannah Point. Era início da manhã e seguiríamos os cientistas de pinguins em
sua pesquisa nesta nova ilha. E então Nacho, o argentino que é o segundo
em comando no navio, informou que não seria possível. Teríamos que esperar até
o início da tarde. Parem e tentem adivinhar o porquê.
Previsão de
tempestade? Uma dobra no espaço-tempo? O abominável homem das neves?
Não, meus amigos. Os
mais de cem turistas de um navio de cruzeiro queriam estar sozinhos na ilha.
Sim, meus amigos. A visão dos cientistas pesquisando o impacto da crise
climática sobre as colônias de pinguins arruinaria a ilusão da Antártida
isolada, da aventura num lugar que ninguém alcança exceto se tiver muito
dinheiro. (...)
A discussão pelo
rádio, entre os navios do Greenpeace e o cruzeiro rolava desde as 6h30 da
manhã. O business venceu a queda de braço. Não é bom fazer inimigos em águas
profundas. Esta é a lógica dominante no nosso mundo: o turismo é mais
importante do que a ciência. Os seis cientistas atrapalhariam os mais de cem
turistas – e não o contrário. Para os seis cientistas não havia problema em conviver
com mais de cem turistas. Mas os cem turistas não queriam conviver com os seis
cientistas. A falsificação da realidade é a melhor realidade. E
também a mais bem paga.
Funciona assim. Há um
acerto entre os cruzeiros para que, quando um deles está numa ilha, os outros
saem da linha de visão. Os turistas pagam caro pela promessa de se sentirem
únicos: neste caso, quase 60 mil reais por 14 dias (perto de 14 mil dólares).
Pode ser muito mais, a depender do percurso, do tipo de cabine, do número de
dias. (...).
Para que eles tivessem
essa “experiência”, seis cientistas tiveram que interromper sua pesquisa e
esperar até a tarde, quando o tempo piorou e a permanência em campo foi
encolhida. Os cientistas precisaram desembarcar nas pedras para alcançar o coração
da ilha porque, com as más condições meteorológicas, o bote era muito leve para
aportar num lugar de melhor acesso. “Que estranho”, comentou um perplexo
Noah Stryker. (...) “Os turistas costumavam gostar de conversar com a
gente, achavam que era mais uma história para contar quando voltassem para
casa.” Com tristeza expliquei a ele que, num momento em que a verdade se tornou
uma escolha pessoal, a ciência e os cientistas estão se tornando párias. Mesmo
que, para afirmar que a terra é plana ou fingir estarem isolados, tantos os
mercadores de ilusões quanto os compradores de ilusões precisem do melhor da
ciência.
Aqui, também os navios
de cruzeiro estão literalmente vendendo um passado, o da Antártida inacessível.
Em algumas ofertas de viagem pela Antártida, os potenciais clientes não são
chamados de turistas, mas de “exploradores”. É curioso como tantos preferem
pagar mais caro pela fantasia. Tantos deixam o conforto de suas casas para
empreenderem um percurso real e pago com dinheiro real, mas para alcançar uma
realidade falsificada. Na ilha que os turistas ocuparam como os únicos humanos,
os pinguins de barbicha (chinstraps) vivem uma dramática redução de sua
população. Esta é a história que os cientistas poderiam contar. Mas essa
história não interessa. Quem, afinal, precisa de fatos?
Num planeta em que
tudo já virou imagem, em que a marca de nosso pé está em todos os lugares,
acabo por sentir compaixão por esses animais humanos que seguem comprando
fantasias de exclusividade. É uma compaixão misturada à raiva, porque essa
negação enfraquece a luta que deveríamos estar travando por políticas públicas
para conter o superaquecimento global e nos adaptar ao mundo que está vindo.
Antes de amaldiçoarmos os turistas antárticos, o que sempre é fácil e também cômodo,
porém, devemos olhar para dentro de nós e descobrir que também temos
dificuldade de abandonar velhos hábitos em nome do bem comum. Acreditem, há
quem sequer é capaz de reciclar seu lixo ou reduzir o consumo de carne.
Hoje, os cientistas se
tornaram a verdade inconveniente. Então, precisam ser tirados da vista. E não
apenas na Antártida.
Adaptado. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-01-26/7-deu-ruim-na-humanidade.html