terça-feira, 19 de abril de 2022

Artigo de opinião

 

Deu ruim na humanidade 

No sétimo capítulo do diário de bordo na Antártida, a jornalista observa uma colônia de animais humanos endinheirados em estado de total negação da realidade 

 

ELIANE BRUM 

A Bordo Do Navio Arctic Sunrise - 26 ENE 2020 - 12:37 BRT 

 

Eu sei que a humanidade está num momento difícil. Você sabe que a humanidade está num momento difícil. (...) No sábado, 25 de janeiro, porém, eu tive certeza sobre o fim do mundo como o conhecemos. Nesta data, não observei pinguins nem baleias nem focas. A espécie sob minha observação era o homo sapiens em estado de absoluta negação. 

Estávamos prontos para desembarcar do Arctic Sunrise e embarcar num bote que nos deixaria em Hannah Point. Era início da manhã e seguiríamos os cientistas de pinguins em sua pesquisa nesta nova ilha. E então Nacho, o argentino que é o segundo em comando no navio, informou que não seria possível. Teríamos que esperar até o início da tarde. Parem e tentem adivinhar o porquê. 

Previsão de tempestade? Uma dobra no espaço-tempo? O abominável homem das neves? 

Não, meus amigos. Os mais de cem turistas de um navio de cruzeiro queriam estar sozinhos na ilha. Sim, meus amigos. A visão dos cientistas pesquisando o impacto da crise climática sobre as colônias de pinguins arruinaria a ilusão da Antártida isolada, da aventura num lugar que ninguém alcança exceto se tiver muito dinheiro. (...) 

A discussão pelo rádio, entre os navios do Greenpeace e o cruzeiro rolava desde as 6h30 da manhã. O business venceu a queda de braço. Não é bom fazer inimigos em águas profundas. Esta é a lógica dominante no nosso mundo: o turismo é mais importante do que a ciência. Os seis cientistas atrapalhariam os mais de cem turistas – e não o contrário. Para os seis cientistas não havia problema em conviver com mais de cem turistas. Mas os cem turistas não queriam conviver com os seis cientistas. A falsificação da realidade é a melhor realidade. E também a mais bem paga. 

Funciona assim. Há um acerto entre os cruzeiros para que, quando um deles está numa ilha, os outros saem da linha de visão. Os turistas pagam caro pela promessa de se sentirem únicos: neste caso, quase 60 mil reais por 14 dias (perto de 14 mil dólares). Pode ser muito mais, a depender do percurso, do tipo de cabine, do número de dias. (...). 

Para que eles tivessem essa “experiência”, seis cientistas tiveram que interromper sua pesquisa e esperar até a tarde, quando o tempo piorou e a permanência em campo foi encolhida. Os cientistas precisaram desembarcar nas pedras para alcançar o coração da ilha porque, com as más condições meteorológicas, o bote era muito leve para aportar num lugar de melhor acesso. “Que estranho”, comentou um perplexo Noah Stryker. (...) “Os turistas costumavam gostar de conversar com a gente, achavam que era mais uma história para contar quando voltassem para casa.” Com tristeza expliquei a ele que, num momento em que a verdade se tornou uma escolha pessoal, a ciência e os cientistas estão se tornando párias. Mesmo que, para afirmar que a terra é plana ou fingir estarem isolados, tantos os mercadores de ilusões quanto os compradores de ilusões precisem do melhor da ciência. 

Aqui, também os navios de cruzeiro estão literalmente vendendo um passado, o da Antártida inacessível. Em algumas ofertas de viagem pela Antártida, os potenciais clientes não são chamados de turistas, mas de “exploradores”. É curioso como tantos preferem pagar mais caro pela fantasia. Tantos deixam o conforto de suas casas para empreenderem um percurso real e pago com dinheiro real, mas para alcançar uma realidade falsificada. Na ilha que os turistas ocuparam como os únicos humanos, os pinguins de barbicha (chinstraps) vivem uma dramática redução de sua população. Esta é a história que os cientistas poderiam contar. Mas essa história não interessa. Quem, afinal, precisa de fatos? 

Num planeta em que tudo já virou imagem, em que a marca de nosso pé está em todos os lugares, acabo por sentir compaixão por esses animais humanos que seguem comprando fantasias de exclusividade. É uma compaixão misturada à raiva, porque essa negação enfraquece a luta que deveríamos estar travando por políticas públicas para conter o superaquecimento global e nos adaptar ao mundo que está vindo. Antes de amaldiçoarmos os turistas antárticos, o que sempre é fácil e também cômodo, porém, devemos olhar para dentro de nós e descobrir que também temos dificuldade de abandonar velhos hábitos em nome do bem comum. Acreditem, há quem sequer é capaz de reciclar seu lixo ou reduzir o consumo de carne. 

Hoje, os cientistas se tornaram a verdade inconveniente. Então, precisam ser tirados da vista. E não apenas na Antártida. 

Adaptado. Disponível em: https://brasil.elpais.com/ciencia/2020-01-26/7-deu-ruim-na-humanidade.html 

 

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1. O texto a seguir foi retirado de um livro do escritor Benito Pérez Galdós – A Conjuração das palavras – e retrata o momento em que as pal...